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Um blog sobre uma tradutora, mas não necessariamente sobre tradução. Um blog sobre meu trabalho, minhas obras e desafios.

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Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brazil
Tradutora desde 1986, Inglês<->Português

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Perdida nas Letras

Aconteceu-me hoje uma coisa curiosa.

Revi o meu livrinho preto.

Meu livrinho preto é um caderninho simples, com capa toda preta, que comprei assim que comecei a traduzir, e ainda antes de sair do jornal (Zero Hora) onde eu trabalhava e já fazia as primeiras traduções.

Nele, até certo ponto (antes do computador), eu anotava tudo o que traduzia, desde os manuais de rotativa da Zero Hora, até os primeiros livros que traduzi na minha vida e que, mal supunha eu, levariam a uma fileira interminável de mais e mais e mais livros.

Está ali, bem à mão, meu caderninho preto. É uma daquelas coisas que, por mas mudanças que eu faça, por mais que meu canto de trabalho sempre se reorganize, por mais que eu ponha tantas coisas fora, está sempre no meio dos dicionários (e na última vez, eram 33 os dicionários).

Abro-o.

Ano passado, lá por outubro, eu festejei a tradução do meu centésimo livro. Eba. Grande feito (se bem que tal feito, na época, tenha me levado a pensar na pouca vida social que tantos livros certamente envolvem).

Pois abrindo meu caderninho preto constato três livros que não anotei na minha tabela sempre em progresso de livros traduzidos, que vai sempre no meu CV, quando o envio a algum cliente.

Que coisa...

Constato que a editora não os publicou, porque procuro, procuro e não os encontro na internet, nem no site da editora. Mas, poxa vida, eu os traduzi!

O primeiro era "Mind in Therapy", de Keeney e Ross. O segundo, Today's Kindergarten, de Spodek, e o terceiro foi o Compêndio de Psiquiatria, 4a. edição (depois ainda traduzi a 5a, 6a e 7a. edição -- atualmente está na nona edição e já não tenho mais nada a ver com a editora).

Essas coisas nem sempre eu entendo. Tipo: como é que perdi esses três filhos meus pelo caminho?

Mais estranho é eu ter esquecido o meu primeiro livro, já que lembro todos os detalhes da sua tradução até hoje.

Verão. Máquina de escrever ***elétrica*** (nossa, coisa antiga), que logo depois troquei por uma eletrônica. A mesa da cozinha com azulejos brancos. O apartamento fresco. O tec-tec incessante da Dayse entusiasmada que se sentia grande coisa ali, sentada na cozinha com aquela pilha de umas 200 laudas com o timbre da editora, o livro original e a máquina de escrever. O cheiro da tinta na sacola prateada da editora, onde estavam as laudas branquinhas (até hoje o sinto na memória). O café preto, companheiro incessante.

E toda a minha vida pela frente.

Mal sabia eu que um dia contaria 100 livros traduzidos e esqueceria desses três filhos lá do comecinho.

Hoje, no início de junho de 2008, penso em 1987, quando comecei.

No meio do caderninho preto há uma folha de papel cor-de-rosa onde fiz um breve currículo que nunca mandei.

Havia nele orgulhosos 3 livros publicados, mas um total de 11 traduzidos.

Oh, vaidade.

Já não a tenho.

É incrível como a gente se acostuma com as coisas. O primeiro livro foi uma festa, quando recebi do editor prontinho, em português, com meu nome impresso (para quem não sabe, tradutor está na mesma categoria que autor).

Depois vêm o segundo, o terceiro... o quarto livro... até o dia em que não há mais onde colocá-los e a gente distribui ou vende aquilo que se traduziu.

É.

Tenho poucos comigo, desses filhos que andei espalhando pelo mundo.

Não posso dizer que sinto falta dos livros que dei ou vendi.

No fim, a gente encara a coisa toda apenas como trabalho. Um modo de ganhar a vida. Um modo que a gente ama, mas como todo amor, também traz consigo uma certa carga de rancores e ressentimentos. Por mais que nos faça feliz, sempre há algo que queríamos, mas o amor nunca nos trouxe.

E a lista que só cresce (está em 106 agora) nos faz lembrar do tique-taque do relógio biológico, que ruma inexoravelmente para algum lugar -- certamente sem livros.

Não é amargura. É a realidade.

Cem livros (ou duzentos, tanto faz) já não me dizem muita coisa, e se apresento esses filhos aqui, é meio como uma forma de dizer a mim mesma que, pelo menos, sei aonde foi o tempo da minha vida.

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